DAVID DE MENDONÇA PORTES
David, o marqueteiro
COM AGENDA DISPUTADÍSSIMA POR GRANDES EMPRESAS E INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS, DAVID FALA DE MARKETING PARA MARQUETEIROS, MAS SEU NEGÓCIO CONTINUA SENDO UMA BANCA DE CAMELÔ
Centro do Rio, seis horas da manhã. A luz tardia do horário de verão e a brisa fresca da primavera dão a falsa impressão de que ainda é madrugada. David já está acordado há mais de uma hora. Saiu de Nilópolis, município da região metropolitana do Rio, quando ainda estava escuro. Todas as manhãs é o mesmo ritual: carregar a van com balas, doces, biscoitos, refrigerantes, gelo e os módulos da barraca que ele arma diariamente na av. Presidente Wilson, a poucos passos do consulado americano. A rotina de David seria parecida com a de milhares de camelôs que atravancam as calçadas das grandes cidades brasileiras. Mas David não é um vendedor comum. É um marqueteiro de carteirinha. E a barraca dele tornou-se um exemplo de marketing que vem seduzindo os maiores empresários do Brasil.
David de Mendonça Portes nasceu em uma família pobre, em Nilópolis. Ainda criança, começou a trabalhar como entregador de supermercado para ajudar a sustentar os oito irmãos. Como milhares de outras crianças brasileiras, parou de estudar antes de completar o primeiro grau. Andou de emprego em emprego até conseguir uma vaga de motorista na gravadora Polygram. Há quatorze anos foi demitido, exatamente quando a mulher estava grávida e precisando de cuidados médicos. Despejado do barraco onde morava na favela da Rocinha foi morar de favor com um amigo. “Foi triste”, lembra ele, “minha mulher estava com oito meses de gravidez e precisava de um remédio. Pedi dinheiro emprestado, mas aí deu na idéia comprar uns docinhos pra vender. Fui no depósito perto da Central e comprei meia dúzia de cada coisa. Eu não sabia que tinha jeito para vender, mas o fato é que no final do dia tinha vendido tudo e duplicado o meu capital. Aí, sim, comprei o remédio”.
Eu não sabia que tinha jeito para vender, mas o fato é que
no final do dia tinha vendido tudo e dobrado o meu capital.
Enfrentando a concorrência
Um ano depois, David já vendia mais de duzentos itens na banca da Presidente Wilson e tinha conseguido comprar uma casa. Mas o sucesso dele atraiu a concorrência. “Foi aí que eu senti a necessidade de fugir do igual, de criar um diferencial”, conta ele, que até então nunca tinha ouvido falar em marketing. “Criei então um setor de promoções. Comprei uma bicicleta, botei uma placa anunciando o sorteio e a urna para depositar os cupons. Foi o meu primeiro gesto de marketing”. E para ser o primeiro, até que foi bastante engenhoso. Em vez de uma promoção, fez logo três. Em todas as compras acima de dois reais, o cliente recebia três cupons e preenchia uma ficha com seus dados. Com o primeiro cupom, concorria a uma bicicleta. O segundo deveria ser acumulado com outros quatorze, o que daria direito a uma compra de graça. O terceiro dava direito a uma nova promoção. Se o número do bilhete coincidisse com o número sorteado a cada manhã, o cliente tinha direito a estourar um balão e ver o que tinha dentro. “Noventa por cento dos balões que eu pendurei na banca tinham um bilhete dizendo 'volte sempre' e dez por cento tinham brindes”, explica. A promoção foi um sucesso e, de quebra, David começou a organizar um banco de dados que hoje é utilizado para enviar mala-direta aos clientes da banca.
São idéias como essas que ele expõe de forma simples nas dezenas de palestras que vem fazendo pelo Brasil afora. “Muitas empresas estão utilizando conceitos de marketing que eu desenvolvi na banca”, diz ele, orgulhoso. “A Vasp, por exemplo, lançou uma promoção em que o passageiro que fizer dez viagens pela companhia ganha uma de graça. A idéia surgiu do exemplo dos cupons acumulados que eu mencionei em uma palestra que dei na empresa”. Apesar de nunca ter cursado um só dia de faculdade, David discorre com desenvoltura sobre teoria de marketing, inclusive para teóricos da área. “Já fiz palestras na Escola Superior de Propaganda e Marketing, do Rio, e eles até me ofereceram uma bolsa de estudos. Também já falei para uma turma de MBA da Fundação Dom Cabral, em Belo Horizonte”.
Eu vendo o que vai satisfazer o cliente.
Quem empurra mercadoria não é um bom vendedor.
Fazendo a diferença
Mas o que o camelô que só usa a intuição tem a ensinar a empresários e marqueteiros profissionais? “É muito simples”, explica ele. “Hoje os produtos são praticamente iguais. O que vai fazer a diferença é o serviço, o atendimento. Então é preciso criar estratégias para primeiro atrair, depois fixar o cliente. E isso tem que ser feito com descontração. Tem que ter um ‘bomdia’ natural. Não pode ser ‘bom-dia’ de aeromoça, formal, robotizado. O atendimento tem que ser feito com calor humano e naturalidade. Um cliente descontraído fica com o bolso vulnerável”, acrescenta ele, mostrando uma máscara com um largo sorriso que costuma usar durante suas palestras para enfatizar a importância da descontração no atendimento ao cliente.
Nem precisava da máscara. David é um sorriso ambulante. Tem sempre uma brincadeira na ponta da língua para todos os 4.800 clientes – devidamente cadastrados – que compram em sua banca. E na “sobreloja” – que nada mais é do que uma prateleira colocada no ponto mais alto da barraca – guarda um sino que toca toda vez que um cliente lhe retribui o sorriso. “A turma gosta, sai todo mundo rindo, descontraído”. Daniela Rebello, curiosamente uma profissional de marketing que trabalha ali perto, confirma: “Ele vende doce como todos os outros só que ele interage com a gente, está sempre agradando todo mundo e esse é o diferencial dele”.
Outro preceito do profeta do marketing é a transparência. “Eu vendo o que vai satisfazer o cliente. Quem empurra mercadoria não é um bom vendedor. Você tem que vender o que o consumidor quer, no momento em que ele quer. Aí ele vai sentir honestidade de sua parte e vai voltar mais vezes. O cliente é a coisa mais importante da empresa. Não existe empresa sem cliente. Isso é o arroz com feijão do marketing. Por isso eu estou sempre tratando meus clientes com transparência e alegria. Quando ligam para o callcenter os clientes só querem falar comigo porque eu brinco, falo frases em inglês, faço uma piada, tudo pra descontrair a clientela”.
Callcenter e drivethrough
O que David chama de callcenter é uma cestinha de plástico pendurada em um das hastes da barraca onde ficam três celulares que não param de tocar. “No início eu tinha um pager que dava direito a seis mil caracteres por mês. Já no primeiro mês eu estourei a cota. Aí pensei em usar aqueles três orelhões da esquina. Peguei os números e mandei para os meus clientes via mala-direta. Foi um sucesso. Os pedidos duplicaram e tive que contratar um auxiliar para o ‘departamento de delivery’. Mas a empresa de telefonia descobriu e tive que parar de usar os telefones públicos. Foi daí que surgiu a idéia do callcenter”. E como uma idéia puxa outra, David aproveitou para fazer mais uma promoção. Toda manhã ele sorteia um número de um a cem e escreve o número sorteado num cartaz onde se lê “Promoção Callcenter”. Se o número sorteado for, por exemplo, o 22, o vigésimo segundo cliente que ligar não paga a compra.
Sempre atento à comodidade do cliente, David criou também o drivethrough, na verdade, uma vaga de estacionamento em frente à barraca que, estranhamente, está sempre vazia. “O pessoal que trabalha por aqui me conhece e colabora, deixando o lugar vago”, explica ele. Foi nesta vaga que o jornalista Ricardo Boechat parou certa manhã para comprar chicletes e acabou impressionado com as técnicas de marketing do camelô. No dia seguinte David estava na Coluna do Swann, no jornal O Globo. Desde então, já apareceu nas principais publicações e televisões do país. Muitas matérias ele exibe num quadro pregado ao lado da banca, perto do “setor de congelados”, uma caixa de isopor onde ele resfria sucos e refrigerantes.
O movimento na barraca de David segue um fluxo mais ou menos constante até o início da tarde. Mas ele notou que, por volta das três da tarde, as vendas baixavam. “Resolvi fazer uma pesquisa e descobri que meus clientes queriam lanchar mas muitos não podiam descer. Chamei de ‘a fome das três’”. Com base na pesquisa, David decidiu criar uma página na internet (www.bancadodavid.cjb.net) para que seus clientes pudessem escolher os produtos e fazer a encomenda por e-mail ou telefone. Como a barraca não tem energia elétrica, o computador fica em casa. Toda vez que chega um pedido por e-mail o filho de 14 anos ou a mulher liga para a banca e passa o pedido. Resultado: David conquistou um novo público e, mais uma vez, aumentou o faturamento em quase 50%. É tudo o que mais querem os empresários que pagam para ouvir as histórias do camelô. E David não se faz de rogado. Como bom marqueteiro, adora estar no centro das atenções. Fala com orgulho da palestra que deu para cento e oitenta executivos a convite do Instituto de Marketing Industrial, em São Paulo. Na platéia, diretores e presidentes de empresas do porte da Volkswagen, Grupo Votorantin, Shell e Riosul. “Fui aplaudido e considerado o melhor palestrante”, lembra, mostrando uma placa de prata na qual ninguém menos que Antônio Ermírio de Moraes lhe parabeniza pelo espírito empreendedor.
De olho no mercado
Marcelo Boschi, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing e da Universidade Cândido Mendes, no Rio, acha que, mais que marqueteiro, David é, na verdade, um “identificador de oportunidades de mercado”. Para ele, muitos profissionais de marketing se acomodam em salas refrigeradas e se esquecem de ouvir o cliente. “Eles contratam pesquisas, criam grupos de consumidores para identificar as tendências do mercado porque perderam a capacidade de olhar, de conversar, de identificar os desejos do cliente”. David concorda em gênero, número e grau. E completa: “Um diretor de marketing está fazendo um péssimo trabalho quando a cadeira dele está quente, quando ele não levanta dali para ver o que está acontecendo na vida real”. O professor Boschi observa ainda que o brasileiro é, em geral, extremamente sociável, mas essa sociabilidade nem sempre se manifesta nas relações de serviço. É um pouco como se servir ao cliente fosse um demérito e colocasse o prestador do serviço na condição de serviçal. Além disso, Boschi lembra que o cliente é o freguês “e não deixa de ser curioso que, na gíria do futebol, o freguês é o perdedor”.
Não para David. Com incrível senso de observação e notável capacidade para tirar proveito de fatos que passariam desapercebidos a olhos menos atentos, ele não pára de criar. A promoção mais recente é o “marketing social”. Ele está sorteando um equipamento de som entre seus clientes. Quem ganhar indicará uma família carente para receber uma cesta de alimentos. Outra promoção anunciada na banca é o marketing da conscientização ou marketing do capacete. A idéia surgiu de um episódio lamentável. Em meados deste ano, um senhor que passava na av. Rio Branco foi atingido por uma marreta que caiu de uma obra e morreu na hora. Atento, David decidiu investir na segurança de seus clientes. “Nas compras acima de dois reais ganhe duas horas de uso gratuito do capacete na área de risco: av. Rio Branco”, avisa o cartaz. “Cliente vivo vale por dois e cliente morto não vale para nada”, sentencia ele.
Os capacetes, o equipamento de som, a televisão sorteada no início do ano, a caderneta de poupança sorteada em maio passado, tudo foi patrocinado. Já faz tempo que David não compra mais os brindes que sorteia na banca. “Eu tenho quase cinco mil clientes catalogados e cerca de quinhentas pessoas compram aqui todos os dias e as empresas estão interessadas nesse potencial”. O Banco Real, por exemplo, aproveitou o sorteio da caderneta de poupança de R$500 e mandou um funcionário para a banca, com uma placa com a marca do banco. Em poucos dias, quase quinhentos clientes de David tornaram-se clientes do banco ao se cadastrarem para receber um cartão de crédito do Real. O sucesso e a expressiva melhora nas finanças não afetaram o comportamento de David. Fala com executivos e boys no mesmo tom brincalhão. Atende a todos com o mesmo sorriso franco. Se um freguês só tem R$0,80 para comprar um refrigerante que custa R$1,00, ele vende por R$0,80 mesmo. “O refrigerante custa pra mim R$0,55. Se eu não vender a R$0,80 vou perder R$0,25 e o cliente”. Da mesma forma, se, por descuido, alguém deixa cair no chão um produto comprado na banca, imediatamente ele faz a reposição. “É o marketing cai-cai. Só eu e o McDonald’s fazemos isso”, brinca.
Um diretor de marketing está fazendo um péssimo trabalho quando a cadeira dele
está quente, quando ele não vai ver o que está acontecendo na vida real.
Aumentando o patrimônio
Aos 44 anos, David tem hoje duas casas, um carro de passeio, uma van para o trabalho e um sítio no interior do Rio. Cobra R$2 mil por palestra e tem a agenda cheia até o ano que vem. A Petrobras e a Fininvest estão entre os seus clientes em 2002. Tem dois empregados na banca e fatura cerca de R$700 por dia. Não troca o trabalho dele por nada. “Não saio daqui de jeito nenhum. Foi aqui que tudo começou e é aqui que tudo acontece”. Já recebeu proposta para trabalhar em grandes empresas, inclusive no Grupo Votorantim, mas recusou todas. “Eu gosto é de ficar aqui, lidando com o povo. Para vender tem que gostar de gente. Vendedor que não gosta de gente deve procurar outro trabalho”. Para o ano que vem, tem planos de completar o segundo grau e, depois, ingressar em um curso de marketing “só pra aprender a teoria porque a prática eu já sei”.
Apostando nas técnicas de marketing desenvolvidas intuitivamente ao longo dos quatorze anos como camelô, David – que hoje prefere ser chamado de “Deivid”, com pronúncia inglesa – mira o futuro com a segurança de quem sabe que trilha o caminho certo. “Os planos são de melhorar sempre. Eu sempre digo que não se pode ter medo de errar porque o pior erro é o de não tentar”. Entre sorrisos e brincadeiras com os clientes, filosofa: “A vida é, por si só, uma grande ousadia e, portanto, é preciso ousar sempre".
David, o marqueteiro
COM AGENDA DISPUTADÍSSIMA POR GRANDES EMPRESAS E INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS, DAVID FALA DE MARKETING PARA MARQUETEIROS, MAS SEU NEGÓCIO CONTINUA SENDO UMA BANCA DE CAMELÔ
Centro do Rio, seis horas da manhã. A luz tardia do horário de verão e a brisa fresca da primavera dão a falsa impressão de que ainda é madrugada. David já está acordado há mais de uma hora. Saiu de Nilópolis, município da região metropolitana do Rio, quando ainda estava escuro. Todas as manhãs é o mesmo ritual: carregar a van com balas, doces, biscoitos, refrigerantes, gelo e os módulos da barraca que ele arma diariamente na av. Presidente Wilson, a poucos passos do consulado americano. A rotina de David seria parecida com a de milhares de camelôs que atravancam as calçadas das grandes cidades brasileiras. Mas David não é um vendedor comum. É um marqueteiro de carteirinha. E a barraca dele tornou-se um exemplo de marketing que vem seduzindo os maiores empresários do Brasil.
David de Mendonça Portes nasceu em uma família pobre, em Nilópolis. Ainda criança, começou a trabalhar como entregador de supermercado para ajudar a sustentar os oito irmãos. Como milhares de outras crianças brasileiras, parou de estudar antes de completar o primeiro grau. Andou de emprego em emprego até conseguir uma vaga de motorista na gravadora Polygram. Há quatorze anos foi demitido, exatamente quando a mulher estava grávida e precisando de cuidados médicos. Despejado do barraco onde morava na favela da Rocinha foi morar de favor com um amigo. “Foi triste”, lembra ele, “minha mulher estava com oito meses de gravidez e precisava de um remédio. Pedi dinheiro emprestado, mas aí deu na idéia comprar uns docinhos pra vender. Fui no depósito perto da Central e comprei meia dúzia de cada coisa. Eu não sabia que tinha jeito para vender, mas o fato é que no final do dia tinha vendido tudo e duplicado o meu capital. Aí, sim, comprei o remédio”.
Eu não sabia que tinha jeito para vender, mas o fato é que
no final do dia tinha vendido tudo e dobrado o meu capital.
Enfrentando a concorrência
Um ano depois, David já vendia mais de duzentos itens na banca da Presidente Wilson e tinha conseguido comprar uma casa. Mas o sucesso dele atraiu a concorrência. “Foi aí que eu senti a necessidade de fugir do igual, de criar um diferencial”, conta ele, que até então nunca tinha ouvido falar em marketing. “Criei então um setor de promoções. Comprei uma bicicleta, botei uma placa anunciando o sorteio e a urna para depositar os cupons. Foi o meu primeiro gesto de marketing”. E para ser o primeiro, até que foi bastante engenhoso. Em vez de uma promoção, fez logo três. Em todas as compras acima de dois reais, o cliente recebia três cupons e preenchia uma ficha com seus dados. Com o primeiro cupom, concorria a uma bicicleta. O segundo deveria ser acumulado com outros quatorze, o que daria direito a uma compra de graça. O terceiro dava direito a uma nova promoção. Se o número do bilhete coincidisse com o número sorteado a cada manhã, o cliente tinha direito a estourar um balão e ver o que tinha dentro. “Noventa por cento dos balões que eu pendurei na banca tinham um bilhete dizendo 'volte sempre' e dez por cento tinham brindes”, explica. A promoção foi um sucesso e, de quebra, David começou a organizar um banco de dados que hoje é utilizado para enviar mala-direta aos clientes da banca.
São idéias como essas que ele expõe de forma simples nas dezenas de palestras que vem fazendo pelo Brasil afora. “Muitas empresas estão utilizando conceitos de marketing que eu desenvolvi na banca”, diz ele, orgulhoso. “A Vasp, por exemplo, lançou uma promoção em que o passageiro que fizer dez viagens pela companhia ganha uma de graça. A idéia surgiu do exemplo dos cupons acumulados que eu mencionei em uma palestra que dei na empresa”. Apesar de nunca ter cursado um só dia de faculdade, David discorre com desenvoltura sobre teoria de marketing, inclusive para teóricos da área. “Já fiz palestras na Escola Superior de Propaganda e Marketing, do Rio, e eles até me ofereceram uma bolsa de estudos. Também já falei para uma turma de MBA da Fundação Dom Cabral, em Belo Horizonte”.
Eu vendo o que vai satisfazer o cliente.
Quem empurra mercadoria não é um bom vendedor.
Fazendo a diferença
Mas o que o camelô que só usa a intuição tem a ensinar a empresários e marqueteiros profissionais? “É muito simples”, explica ele. “Hoje os produtos são praticamente iguais. O que vai fazer a diferença é o serviço, o atendimento. Então é preciso criar estratégias para primeiro atrair, depois fixar o cliente. E isso tem que ser feito com descontração. Tem que ter um ‘bomdia’ natural. Não pode ser ‘bom-dia’ de aeromoça, formal, robotizado. O atendimento tem que ser feito com calor humano e naturalidade. Um cliente descontraído fica com o bolso vulnerável”, acrescenta ele, mostrando uma máscara com um largo sorriso que costuma usar durante suas palestras para enfatizar a importância da descontração no atendimento ao cliente.
Nem precisava da máscara. David é um sorriso ambulante. Tem sempre uma brincadeira na ponta da língua para todos os 4.800 clientes – devidamente cadastrados – que compram em sua banca. E na “sobreloja” – que nada mais é do que uma prateleira colocada no ponto mais alto da barraca – guarda um sino que toca toda vez que um cliente lhe retribui o sorriso. “A turma gosta, sai todo mundo rindo, descontraído”. Daniela Rebello, curiosamente uma profissional de marketing que trabalha ali perto, confirma: “Ele vende doce como todos os outros só que ele interage com a gente, está sempre agradando todo mundo e esse é o diferencial dele”.
Outro preceito do profeta do marketing é a transparência. “Eu vendo o que vai satisfazer o cliente. Quem empurra mercadoria não é um bom vendedor. Você tem que vender o que o consumidor quer, no momento em que ele quer. Aí ele vai sentir honestidade de sua parte e vai voltar mais vezes. O cliente é a coisa mais importante da empresa. Não existe empresa sem cliente. Isso é o arroz com feijão do marketing. Por isso eu estou sempre tratando meus clientes com transparência e alegria. Quando ligam para o callcenter os clientes só querem falar comigo porque eu brinco, falo frases em inglês, faço uma piada, tudo pra descontrair a clientela”.
Callcenter e drivethrough
O que David chama de callcenter é uma cestinha de plástico pendurada em um das hastes da barraca onde ficam três celulares que não param de tocar. “No início eu tinha um pager que dava direito a seis mil caracteres por mês. Já no primeiro mês eu estourei a cota. Aí pensei em usar aqueles três orelhões da esquina. Peguei os números e mandei para os meus clientes via mala-direta. Foi um sucesso. Os pedidos duplicaram e tive que contratar um auxiliar para o ‘departamento de delivery’. Mas a empresa de telefonia descobriu e tive que parar de usar os telefones públicos. Foi daí que surgiu a idéia do callcenter”. E como uma idéia puxa outra, David aproveitou para fazer mais uma promoção. Toda manhã ele sorteia um número de um a cem e escreve o número sorteado num cartaz onde se lê “Promoção Callcenter”. Se o número sorteado for, por exemplo, o 22, o vigésimo segundo cliente que ligar não paga a compra.
Sempre atento à comodidade do cliente, David criou também o drivethrough, na verdade, uma vaga de estacionamento em frente à barraca que, estranhamente, está sempre vazia. “O pessoal que trabalha por aqui me conhece e colabora, deixando o lugar vago”, explica ele. Foi nesta vaga que o jornalista Ricardo Boechat parou certa manhã para comprar chicletes e acabou impressionado com as técnicas de marketing do camelô. No dia seguinte David estava na Coluna do Swann, no jornal O Globo. Desde então, já apareceu nas principais publicações e televisões do país. Muitas matérias ele exibe num quadro pregado ao lado da banca, perto do “setor de congelados”, uma caixa de isopor onde ele resfria sucos e refrigerantes.
O movimento na barraca de David segue um fluxo mais ou menos constante até o início da tarde. Mas ele notou que, por volta das três da tarde, as vendas baixavam. “Resolvi fazer uma pesquisa e descobri que meus clientes queriam lanchar mas muitos não podiam descer. Chamei de ‘a fome das três’”. Com base na pesquisa, David decidiu criar uma página na internet (www.bancadodavid.cjb.net) para que seus clientes pudessem escolher os produtos e fazer a encomenda por e-mail ou telefone. Como a barraca não tem energia elétrica, o computador fica em casa. Toda vez que chega um pedido por e-mail o filho de 14 anos ou a mulher liga para a banca e passa o pedido. Resultado: David conquistou um novo público e, mais uma vez, aumentou o faturamento em quase 50%. É tudo o que mais querem os empresários que pagam para ouvir as histórias do camelô. E David não se faz de rogado. Como bom marqueteiro, adora estar no centro das atenções. Fala com orgulho da palestra que deu para cento e oitenta executivos a convite do Instituto de Marketing Industrial, em São Paulo. Na platéia, diretores e presidentes de empresas do porte da Volkswagen, Grupo Votorantin, Shell e Riosul. “Fui aplaudido e considerado o melhor palestrante”, lembra, mostrando uma placa de prata na qual ninguém menos que Antônio Ermírio de Moraes lhe parabeniza pelo espírito empreendedor.
De olho no mercado
Marcelo Boschi, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing e da Universidade Cândido Mendes, no Rio, acha que, mais que marqueteiro, David é, na verdade, um “identificador de oportunidades de mercado”. Para ele, muitos profissionais de marketing se acomodam em salas refrigeradas e se esquecem de ouvir o cliente. “Eles contratam pesquisas, criam grupos de consumidores para identificar as tendências do mercado porque perderam a capacidade de olhar, de conversar, de identificar os desejos do cliente”. David concorda em gênero, número e grau. E completa: “Um diretor de marketing está fazendo um péssimo trabalho quando a cadeira dele está quente, quando ele não levanta dali para ver o que está acontecendo na vida real”. O professor Boschi observa ainda que o brasileiro é, em geral, extremamente sociável, mas essa sociabilidade nem sempre se manifesta nas relações de serviço. É um pouco como se servir ao cliente fosse um demérito e colocasse o prestador do serviço na condição de serviçal. Além disso, Boschi lembra que o cliente é o freguês “e não deixa de ser curioso que, na gíria do futebol, o freguês é o perdedor”.
Não para David. Com incrível senso de observação e notável capacidade para tirar proveito de fatos que passariam desapercebidos a olhos menos atentos, ele não pára de criar. A promoção mais recente é o “marketing social”. Ele está sorteando um equipamento de som entre seus clientes. Quem ganhar indicará uma família carente para receber uma cesta de alimentos. Outra promoção anunciada na banca é o marketing da conscientização ou marketing do capacete. A idéia surgiu de um episódio lamentável. Em meados deste ano, um senhor que passava na av. Rio Branco foi atingido por uma marreta que caiu de uma obra e morreu na hora. Atento, David decidiu investir na segurança de seus clientes. “Nas compras acima de dois reais ganhe duas horas de uso gratuito do capacete na área de risco: av. Rio Branco”, avisa o cartaz. “Cliente vivo vale por dois e cliente morto não vale para nada”, sentencia ele.
Os capacetes, o equipamento de som, a televisão sorteada no início do ano, a caderneta de poupança sorteada em maio passado, tudo foi patrocinado. Já faz tempo que David não compra mais os brindes que sorteia na banca. “Eu tenho quase cinco mil clientes catalogados e cerca de quinhentas pessoas compram aqui todos os dias e as empresas estão interessadas nesse potencial”. O Banco Real, por exemplo, aproveitou o sorteio da caderneta de poupança de R$500 e mandou um funcionário para a banca, com uma placa com a marca do banco. Em poucos dias, quase quinhentos clientes de David tornaram-se clientes do banco ao se cadastrarem para receber um cartão de crédito do Real. O sucesso e a expressiva melhora nas finanças não afetaram o comportamento de David. Fala com executivos e boys no mesmo tom brincalhão. Atende a todos com o mesmo sorriso franco. Se um freguês só tem R$0,80 para comprar um refrigerante que custa R$1,00, ele vende por R$0,80 mesmo. “O refrigerante custa pra mim R$0,55. Se eu não vender a R$0,80 vou perder R$0,25 e o cliente”. Da mesma forma, se, por descuido, alguém deixa cair no chão um produto comprado na banca, imediatamente ele faz a reposição. “É o marketing cai-cai. Só eu e o McDonald’s fazemos isso”, brinca.
Um diretor de marketing está fazendo um péssimo trabalho quando a cadeira dele
está quente, quando ele não vai ver o que está acontecendo na vida real.
Aumentando o patrimônio
Aos 44 anos, David tem hoje duas casas, um carro de passeio, uma van para o trabalho e um sítio no interior do Rio. Cobra R$2 mil por palestra e tem a agenda cheia até o ano que vem. A Petrobras e a Fininvest estão entre os seus clientes em 2002. Tem dois empregados na banca e fatura cerca de R$700 por dia. Não troca o trabalho dele por nada. “Não saio daqui de jeito nenhum. Foi aqui que tudo começou e é aqui que tudo acontece”. Já recebeu proposta para trabalhar em grandes empresas, inclusive no Grupo Votorantim, mas recusou todas. “Eu gosto é de ficar aqui, lidando com o povo. Para vender tem que gostar de gente. Vendedor que não gosta de gente deve procurar outro trabalho”. Para o ano que vem, tem planos de completar o segundo grau e, depois, ingressar em um curso de marketing “só pra aprender a teoria porque a prática eu já sei”.
Apostando nas técnicas de marketing desenvolvidas intuitivamente ao longo dos quatorze anos como camelô, David – que hoje prefere ser chamado de “Deivid”, com pronúncia inglesa – mira o futuro com a segurança de quem sabe que trilha o caminho certo. “Os planos são de melhorar sempre. Eu sempre digo que não se pode ter medo de errar porque o pior erro é o de não tentar”. Entre sorrisos e brincadeiras com os clientes, filosofa: “A vida é, por si só, uma grande ousadia e, portanto, é preciso ousar sempre".
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