- Epa, cabra velho! Já chegou? E como se foi de vadiagem?!!!
- Entonce que, por causa de sua volta, mando-lhe estas linhas: astrodia recebi do meu parente e amigo Décio Pereira de Brito, da Fazenda Ping’água em Acari, três coisas que foram do uso do seu bisavô que era meu tio-avô, defunto em 1920, aos 62 anos: 1 – chapéu preto de abas não muito largas, com carneira e forro estragados, fira de tecido fino e torçal preto, e no fundo da copa a figura do cavalo puxando uma carruagem e, abaixo dela, impresso – “MODE DE PARIS” – Adolpho & Ferrrão – Pernambuco, e ainda o seu nome com letra de mão em boa caligrafia – José Sancho de Aro.
- 2 – um binóculo, sem nenhum indicativo, com cinco graus de extensão e 3 – uma calça preta, feitura de alfaiate, bolsos na frente e, no lugar de passadores para cinturão, uma ataca com fivela, lendo-se nos 12 botões de metal, em alto relevo, “MODE DE PARIS”. Entretanto, dizia quem o conheceu que ele mesmo cortava e costurava as suas roupas de trabalho e não admira pois o seu irmão Francisco Raimundo de Araújo (1855-1940), três anos mais velho, era um bom ferreiro. É que naqueles tempos ao homem era dado conhecer de uma arte, neste caso arte adquirida quando viveu com seu tio-materno e padrinho, o padre José Modesto Pereira de Brito (1818-1888), nos anos em que este foi vigário no Crato – Ceará e em Exu – Pernambuco.
- Entregue aos afazeres domésticos, cuidando de menino, da administração da casa, da almofada de bilro, do marido, das rezas e de um dedilhar de violão em tardes de ternura, sonhos e ilusões, minha mãe (1896-1964) passou da máquina de mão da minha avó para a máquina de pé marca “SINGER”, onde costurava a roupa da casa deixando as calças de homem para as costureiras de ganho. Dessa arte Antônia Ernesto, irmã da minha avó materna e, também do mesmo naipe, Maria Josefina cortando e cosendo até batina de seminarista.
- Do balcão da “A BOREAL”, loja de tecidos de Antônio Bezerra Fernandes (1886-1967), a de maior comércio, dono barateiro vendendo fiado para atender à freguesia, com quem proseava contente, saíam as compras lá de casa, autorizadas por meu pai, o pano sendo medido em metro de madeira, rasgado ou cortado de tesoura o tanto escolhido, fazendo aquele taipeiro em cima do balcão para depois conferir o preço, ver a metragem e tirar a conta com a prova dos noves-fora, o lápis guardado por trás da orelha. Brim, tricoline, bulgariana, algodãozinho, madapolão, fustão enfestado, morim, cambraia, bramante de quatro larguras, chita, cretone e coisa e lousa e tudo mais requerido pela usança do tempo, ali estava arrumado com aprumo e boniteza nas prateleiras possantes. Casimira, tropical, gabardine, linha HJ e S120, seda e crepe quase não havia e se tinha era mais pouco por conta da carestia e da saída pequena, não tendo quem se atrevesse costurar roupa de lorde com o risco de botar tudo a perder. Aquilo era coisa pra gente endinheirada compra lá fora, na capital, e entregar em alfaiataria decente, onde tirar as medidas e receber a beca pronta.
- O pano a ser trabalhado carecia ficar de molho para não encolher depois de cortado, a peça pronta. Se o paletó encolhia ficando curto nas costas, dizia o relaxo: está com-medo-de-bufa; para a calça curta, meia-coronha, não cobrindo as canelas, a gozação: calça-de-pegar-bode e, sobre a roupa folote – é que o defunto era maior.
- Para os homens de casa minha mãe cortava e cosia camisas e cuecas, calções e pijamas, obedecendo aos moldes de papel. Com uma tesoura preta, cortante e pesada, cortava o pano acompanhando o molde. Camisas de mangas curtas, camisas de mangas compridas, de algodão resistente ou de tricoline, consoante a finalidade. Numa ou noutra cueca, um bolso com botão para levar, em viagem, o dinheiro bem guardado.
- O vestir das mulheres eram os vestidos, as combinações, as saias, as blusas, as camisolas, as calças íntimas e os califons que era o lugar mais protegido para guardar dinheiro pequeno, um bilhete, uma chave.
Do uso da casa, o pano de enxugar prato, de passar café, de coar água, de proteger a boca do pote; o saco de feira, o de escorrer coalhada; o lençol de se cobrir, a coberta de taco. A toalha de mesa, a colcha da cama, e de cama só uma havia – a do casal, com espelhos em ferro, um mais alto, e colchão completo de paina sobre o lastro de arama flexível trançado.
- Vestindo minha mãe, roupa de festa era roupa diferente. Vestido de figurino em tecido vindo de longe. Mangas compridas, saia no meio da canela. Sapatos e meia fina que quando se rasgava virava bola-de-meia. No mais, as mesmas roupas de todos os dias. Orelhas sem brinco, rosto sem ruge com leve tom de pó; lábios sem batom, unhas sem pintura, braço sem relógio. No pescoço o trancelim de ouro com medalha; um broche com vistoso rubi na gola do vestido e nas mãos apenas a aliança na esquerda, derna 1914. Cabelos lisos, penteados, negros e soltos ou presos por marrafa. E o perfume de um extrato discreto...
- Também meu pai (1891-1959) mudava, passando da calça de mescla para a de linho, da camisa de trabalho para a camisa fina. Sapato lustroso, de enfiadeira, cinturão largo com fivela de tartaruga onde seu nome em letras de ouro, presente que lhe deram e, no bolso do níquel o relógio CYMA de algibeira, só tirado do cofre de festa em festa, todo em ouro com chantilene e tudo. E sempre chapéu de massa cinza e sempre os óculos de sombra protegendo os olhos.
- Ah, meu bom amigo, aqui eu me derramo, saudoso e terno, sobre a memória dos meus pais – aquela gente simples, laboriosa e humilde.
Fonte:tribunadonorte.com.br
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