O mercado de lingerie vem se transformando no Brasil. A ordem é sofisticar os produtos, partir para o varejo, ter marcas refinadas. Mas a DeMillus decidiu não fazer nada disso. E se deu bem.
Abdalla Haddad, da Demillus: sucesso de porta em porta
São Paulo - Ao volante de um Gol ano 2002, o
pernambucano Severino José Barboza, de 50 anos, cruza diariamente a
zona da mata nordestina com o porta-malas abarrotado de calcinhas e
sutiãs. Barboza é vendedor de lingerie porta a porta. Há alguns anos, a
atividade causava embaraço entre os 50 000 habitantes da cidade de
Timbaúba, a 100 quilômetros de Recife, onde mora.
Ele perdeu a conta de quantas vezes deu com a cara na porta porque as
potenciais clientes não se sentiam à vontade em comprar roupas íntimas
vendidas por um homem. Mas, de uns anos para cá, a coisa mudou. Barboza,
que durante boa parte da vida trabalhou em lavouras de milho e feijão,
virou o maior vendedor de lingerie porta a porta do país.
Sua estratégia: chegar aos bairros e regiões mais isolados, onde as
moradoras não têm acesso fácil a lojas que vendam lingerie. Além disso,
ele abriu uma lojinha no centro de Timbaúba e montou uma equipe de 40
pessoas (que pagam a ele uma comissão de 5% sobre o valor das vendas e o
ajudam a se aproximar das clientes mais recatadas).
Com a força das ajudantes, ele vende 700 peças e ganha mais de 2 000
reais por mês — o suficiente para, em agosto, ter mandado a filha de 15
anos estudar inglês no Canadá. “Vendo para gente muito simples, que não
comprava lingerie por falta de dinheiro e de opção”, diz Barboza. “A
renda melhorou nos últimos anos. E a opção eu ofereço.”
Seu sucesso é consequência de uma mudança já conhecida: o aumento do
poder de compra da população de baixa renda no interior do país. Com
mais dinheiro no bolso, milhares de pessoas passaram a comprar
geladeiras, televisores, roupas, biscoitos. E também calcinhas e sutiãs.
Nenhuma empresa aproveitou esse momento tão bem quanto a DeMillus,
fornecedora de Barboza e a maior fabricante de lingerie do país. Nos
últimos três anos, a receita da empresa aumentou 40% e deve fechar o ano
em 580 milhões de reais — é quatro vezes a expansão média do setor.
Fundada em 1947 pelo empresário carioca Nahum Manela, ela é a marca
líder há mais de duas décadas. Em 2002, o fundador, que morreu em julho
deste ano, passou o bastão para o vice-presidente, Abdalla Haddad. Sua
viúva e uma das filhas ainda trabalham na empresa.
A DeMillus vende 40 milhões de peças por ano — cerca de 10% do
mercado nacional, segundo dados do Instituto de Estudos e Marketing
Industrial. São 6 500 funcionários e quatro fábricas: três no Rio de
Janeiro e outra em Santa Rita, na Paraíba. Mais uma fábrica será
inaugurada no primeiro semestre de 2013, no Rio. Em produção, a DeMillus
está muito à frente da segunda colocada, a Duloren, com 18 milhões, e
da Hope e do grupo Scalina (das marcas Trifil e Scala), cada um com 8
milhões.
O crescimento
recente da DeMillus não é resultado de uma guinada estratégica. A
empresa se deu bem ao analisar os movimentos das concorrentes — e ao
ficar exatamente no mesmo lugar. Nos últimos anos, Lupo, Hope e Scala,
tradicionais fabricantes locais, abriram lojas próprias e passaram a
investir pesado em marketing.
A Hope contratou Gisele Bündchen e Juliana Paes como
garotas-propaganda. A Lupo contratou Neymar. Quem não seguisse o mesmo
caminho, dizia-se, “estava lascado”. Mas a DeMillus continuou a fazer o
que fazia desde os anos 80 — fabricar lingerie barata e vender por
catálogo, o jeito mais antiquado possível.
“A demanda por esse tipo de produto vem crescendo, especialmente nos
estados do Nordeste e na região metropolitana de São Paulo, que responde
por 40% de nossas vendas”, diz o presidente Abdalla Haddad. Há quatro
anos, a DeMillus contratou uma estilista para rejuvenescer (ou acabar
com os 50 tons de bege) suas peças — que ainda são chamadas de bregas
pela concorrência.
Puro despeito, segundo os executivos da DeMillus. Desde que lançou
uma campanha no programa de Ana Maria Braga, na TV Globo, há quatro
anos, o número de revendedores da empresa dobrou e chegou a 160 000 —
boa parte deles em cidades onde não há grandes lojas de lingerie e o
porta a porta é a melhor opção de compras.
Como não aderiu à última moda do mercado, a DeMillus também conseguiu
evitar um problema que está atingindo todas as concorrentes: o aumento
de custos. Além das pioneiras, entre elas Lupo e Hope, recentemente
empresas como Puket e Valisere também lançaram suas redes de lojas.
Toda essa turma passou a brigar por poucos espaços comerciais nos
shoppings — o que fez o preço do aluguel disparar. Em alguns casos, as
empresas são obrigadas a pagar até 5 milhões de reais apenas para se
instalar num shopping center. “Com esse preço, é quase impossível
recuperar o investimento”, afirma o consultor de varejo Marcelo Cherto.
“Há uma guerra entre as marcas por consumidoras e pontos comerciais que
só tende a aumentar. E a DeMillus conseguiu ficar de fora.”
Apostar no que está dando certo há décadas tem sido uma fortaleza
para a DeMillus. Mas nada garante que colocar todas as fichas nas vendas
por catálogo, como vem fazendo até agora, vai continuar a ser um bom
negócio para a companhia.
Empresas mais tradicionais desse segmento, como a Natura, estudam há
anos formas de entrar no varejo e, com isso, chegar a novos perfis de
consumidores. Até porque o mesmo fenômeno que impulsiona as vendas da
empresa pode, em pouco tempo, colocar seu negócio em risco.
À medida que aumentam a renda e o emprego formal, menor é a oferta de
pessoas a ser recrutadas como revendedoras. Em outra ponta, a expansão
de redes como Marisa e Renner para cidades do interior e para a
periferia das grandes metrópoles vai oferecer uma nova opção às
tradicionais clientes da DeMillus.
“Só vai sobreviver quem vender seus produtos em mais de um canal”,
afirma o consultor Marcelo Prado, do Instituto de Estudos e Marketing
Industrial. Por enquanto, a DeMillus não tem planos de expandir sua
atuação para além dos catálogos. É arriscado demais? A empresa já se
recusou a mudar a estratégia antes. Desta vez, é prudente dar à DeMillus
o benefício da dúvida.
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