O mercado de trabalho brasileiro sofreu um baque nos últimos meses - mas, apesar da crise global, as estimativas mostram que a economia do país ainda vai gerar centenas de milhares de empregos formais em 2009
Em menos de dois meses, o clima entre os 2 000 funcionários da subsidiária brasileira da MWM International - uma das maiores fabricantes de motores de carros, ônibus e tratores do mundo - mudou radicalmente. Eles, que vinham trabalhando em ritmo frenético quase até o final de 2008, e por isso fizeram jus às mais altas bonificações pagas em razão dos resultados da empresa, iniciaram o ano novo sob a angustiante dúvida de permanecer empregados ou não. "Em 31 de outubro, finalizamos o melhor ano fiscal de nossa história e, até meados de novembro, não sentimos nenhum reflexo da crise", afirma Waldey Sanchez, presidente da MWM no Brasil. No fim de novembro, porém, as programações de produção das montadoras que compram os motores da MWM começaram a sofrer cortes. Em dezembro, as revisões de pedidos dos clientes - que enviam nessa época o planejamento de encomendas do ano todo - passaram a indicar que, em 2009, a empresa venderia quase 30% menos motores que no ano passado. A MWM replicava, assim, o movimento quase generalizado de redução brusca nos negócios no país. A economia brasileira, que chegou a setembro crescendo a um ritmo anualizado de 7%, passou por uma reviravolta em outubro, a ponto de os economistas estimarem que houve recuo do produto interno bruto no último trimestre de 2008.
O capítulo mais recente da história vivida pela MWM ocorreu em 29 de janeiro, quando os funcionários reunidos em assembléia na fábrica, em São Paulo, aprovaram acordo para reduzir, a partir de fevereiro, 20% da jornada mensal de trabalho e 17,5% de seus salários. Contrariamente ao que ocorreu em outras empresas, os funcionários da MWM aprovaram o acordo sem protestos. Talvez essa aceitação só tenha sido possível graças à postura do presidente da companhia. Sanchez não enviou um advogado para tratar com os sindicalistas. Foi pessoalmente expor a situação da empresa na sede do sindicato dos metalúrgicos, no bairro da Liberdade, no Centro de São Paulo. Em troca da concessão feita, os funcionários da MWM conseguiram a garantia de manter os empregos por mais alguns meses. A esperança dos trabalhadores e da cúpula da empresa é que a redução dos salários permita a travessia do período mais agudo da crise para o momento em que as encomendas voltem a crescer, um cenário vislumbrado para abril. "O objetivo é manter todos os funcionários, pois, como disse Henry Ford, um desempregado é uma pessoa a menos para consumir e uma a mais para alimentar a crise", diz Sanchez. Ele próprio também receberá o holerite de fevereiro mais magro.
O efeito mais concreto da crise econômica mundial finalmente chegou ao Brasil neste começo de ano com a divulgação do balanço de demissões ocorridas em dezembro - o corte foi de 655 000 postos, quando o esperado seria de no máximo 400 000 - e com novos anúncios de demissões em janeiro. A rapidez do agravamento da situação assustou, com razão, trabalhadores e empresários no país inteiro. Como o encolhimento do mercado é hoje um drama mundial, também se disseminou a dúvida sobre o que acontecerá com o emprego ao longo de 2009. Na tentativa de jogar luz sobre esse cenário ainda nebuloso, EXAME consultou dezenas de economistas, especialistas em trabalho e empresários. Teve acesso exclusivo também a um estudo realizado pela LCA, uma das consultorias econômicas com mais tradição em projeções na área de emprego. A opinião geral é que, sim, o desemprego aumentará em 2009. Porém, o impacto sobre o mercado de trabalho ficará longe das piores crises sofridas pelo país no passado.
O estudo da LCA projeta dois cenários para 2009. O que a consultoria considera mais provável é que a taxa média de desemprego suba para 8,5%, ante os 7,9% registrados em 2008, quando o país teve a menor taxa de desocupados desde que o acompanhamento passou a ser feito. Esse cenário toma como premissa um crescimento do PIB de 2,8%. Isso permitiria que, neste ano, o Brasil obtivesse um saldo positivo - resultante da diferença entre admissões e demissões - de 875 000 postos de trabalho com carteira assinada. No outro cenário, mais adverso por se basear nas previsões predominantes no mercado de que a economia crescerá apenas 1,8%, o número de vagas criadas cairia para 578 000, o que elevaria a taxa de desemprego para 9%. "Os resultados são bastante inferiores aos do ano passado, quando o saldo entre pessoas admitidas e demitidas foi positivo em 1,5 milhão de empregos", afirma o economista Fábio Romão, autor do estudo. "Mas, com as informações que temos hoje, mesmo a projeção mais conservadora não deve provocar uma situação muito pior que a de 2002, quando muitas empresas demitiram em razão das turbulências provocadas durante a pré-eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva." Não se trata de uma boa notícia - longe disso. Estima-se que o Brasil precise criar mais de 1 milhão de novos postos formais a cada ano para dar conta da chegada de jovens ao mercado. Gerar menos vagas, como tudo indica que vá acontecer em 2009, significa deixar mais gente de fora. Mas o ponto é que o Brasil abrirá centenas de milhares de novos empregos neste ano - mesmo em meio a um dos piores anos da economia internacional. Em dezembro, portanto, haverá mais brasileiros no mercado de trabalho formal do que há hoje.
Não se pode esquecer que a crise atual ainda está em andamento - e possivelmente apenas no início. Seus desdobramentos dependem não só de novos acontecimentos mas, sobretudo, da reação de empresários e consumidores a cada novo capítulo. Essas reações, por sua vez, dependem fundamentalmente da fidelidade das informações a que as pessoas têm acesso. É particularmente importante entender o grau de contaminação da economia. "Apesar da multiplicação das notícias de demissões, vale observar que, pelo menos por enquanto, não há uma onda generalizada de cortes", afirma José Márcio Camargo, doutor em economia do trabalho e sócio da Opus Gestão de Recursos. Até agora, as demissões estão mais localizadas em três grupos de empresas: nas exportadoras, em razão da desaceleração da demanda internacional, na construção civil e nas indústrias de bens duráveis de preço alto, como os automóveis, cujas vendas no mercado interno dependem da oferta de crédito e da confiança do consumidor. A redução do crédito fez com que as montadoras de veículos fossem rapidamente atingidas e apelassem para a demissão de empregados temporários e para acordos de redução de jornada e salário.
No caso da construção civil, a queda do emprego já foi forte. "De outubro a dezembro, tivemos uma perda líquida de 40 000 postos de trabalho", afirma Paulo Safady Simão, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil. Trata-se de uma mudança drástica, considerando que o setor havia criado 300 000 novos empregos de janeiro a setembro. Ainda assim, Simão acredita que haverá uma boa recuperação no segundo semestre, especialmente se forem confirmadas novas medidas do governo de apoio ao setor. Entre as medidas aguardadas pelas construtoras e pelas incorporadoras como parte de um pacote em gestação na Casa Civil e no Ministério da Fazenda há planos para estimular a construção de casas populares e para ampliar os financiamentos à classe média (até o fechamento desta edição, em 2 de fevereiro, nada havia sido anunciado). Também há estudos de novas concessões de estradas. "Este ano será uma ducha fria se comparado com 2008, quando estávamos superaquecidos", diz Simão. "Mas não deve ser um dos períodos mais difíceis que enfrentamos caso o governo faça o que tem dito que irá fazer." Apesar do relativo otimismo, Simão sabe que, caso o crédito permaneça restrito por muito mais tempo, não há governo que consiga evitar uma mortandade de postos de trabalho no setor. "Antes levantávamos dinheiro nos bancos em apenas 15 dias. Agora, os processos se arrastam e, consequentemente, as incorporadoras não lançam mais nada", diz ele. Por enquanto, as empresas do setor vão se virando como podem para tentar manter as vendas. A paulista Goldfarb, uma das maiores incorporadoras e construtoras de residências para classe média baixa no país, manteve de novembro até o final de janeiro uma promoção para tirar o receio de quem anda preocupado em assumir financiamentos diante da crise econômica. "Em vez de nos retrair, optamos por uma estratégia de investir em marketing. Anunciamos que garantiríamos a recompra dos imóveis, com devolução integral do valor pago, aos clientes que perdessem o emprego durante a construção do imóvel", diz José Antonio Grabowsky, presidente da PDG Realty, empresa de investimentos que é sócia da Goldfarb.
O mapa do emprego
O impacto sobre o emprego irá variar entre os setores produtivos e as várias regiões do país. O epicentro da crise, pelo menos por ora, são as áreas mais ricas e industrializadas. O investimento das empresas, que vinha funcionando como um motor do crescimento, deve recuar, passando de uma expansão de 17% no ano passado para apenas 4% em 2009, de acordo com previsão da consultoria econômica MCM. Essa queda afeta não apenas as fabricantes de máquinas e equipamentos como também a siderurgia. São indústrias concentradas principalmente no Sudeste. Também a Zona Franca de Manaus está no grupo das mais afetadas, devido à concentração de montadoras de motocicletas e de produtos eletroeletrônicos. Na outra ponta estão as regiões Nordeste e Norte. Por terem economias menos sofisticadas e mais dependentes de transferências do governo, devem sentir menos os efeitos da crise. "Boa parte da população nordestina vive de benefícios da Previdência e do Bolsa Família, e esses recursos são garantidos, com crise ou sem crise", diz o consultor Camargo. Sul e Centro-Oeste, com grande presença do agronegócio, estão numa posição intermediária - a maior preocupação é com o desempenho de suas exportações.
Em meio a um cenário difícil, há verdadeiros oásis de tranquilidade. "Estamos na contramão do noticiário, pois nosso problema hoje é contratar, não demitir", afirma Angelo Bellelis, presidente do Estaleiro Atlântico Sul, instalado junto ao porto de Suape, no litoral pernambucano. Neste ano, a empresa passará dos atuais 1 500 funcionários para pelo menos o dobro para atender às encomendas de 15 navios petroleiros, da Transpetro, empresa que gerencia a frota de navios da Petrobras, e de um casco de plataforma de petróleo. Até agora, não houve sinais de adiamento de nenhum pedido. Pelo contrário: o primeiro navio a ser entregue teve o prazo antecipado de agosto para abril de 2010. A cada dois meses e meio entram 300 novos funcionários no estaleiro. Antes do início do trabalho, eles recebem seis meses de cursos de qualificação, dada a dificuldade de encontrar mão-de-obra treinada depois que a indústria naval foi ressuscitada. "É um privilégio não só empregar essas pessoas mas principalmente qualificá-las", diz Bellelis.
Os navios petroleiros estão na mesma categoria de grande parte das obras de infraestrutura, que levam anos até ficar prontas. É o caso da construção de usinas de geração de energia, da prospecção e exploração de petróleo, dos reparos em estradas já concedidas ao setor privado e de outras obras. A maioria desses projetos tem recursos garantidos, e sua interrupção causaria mais prejuízo do que sua continuidade. Em janeiro, quando a onda de desemprego já batia no Brasil, a construtora OAS admitiu 1 000 funcionários com carteira assinada. Todos vão trabalhar nas obras da hidrelétrica de Estreito, um empreendimento de 3,3 bilhões de reais, do grupo franco-belga Suez. A usina, localizada no Maranhão, é uma sociedade entre Suez, Vale, Alcoa e Camargo Corrêa. A obra, iniciada em 2007, será concluída em 2010 e terá capacidade de gerar energia para abastecer uma cidade de 1,5 milhão de habitantes. Apenas na construção de Estreito trabalham hoje 6 000 pessoas. Além de Estreito, a Suez está construindo a hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, que vai consumir 9 bilhões de reais de investimento e gerar 28 000 empregos diretos e indiretos até 2012. Por enquanto, o canteiro emprega 600 pessoas, mas o plano é chegar em dezembro a 6 500 funcionários e a 10 000 em 2010. "Não vamos diminuir ou interromper nenhum projeto", diz Mauricio Bähr, presidente do conselho de administração do grupo Suez no Brasil. "Os recursos estão garantidos e a energia que será gerada ali já foi vendida."
A aposta dos especialistas é que o mercado doméstico também funcione como um amortecedor da crise sobre o país e ajude a preservar empregos, especialmente nos setores de produtos básicos. O varejo de alimentos e de medicamentos, por exemplo, sofrerá menos impacto que os demais, sobretudo porque alimentação e remédios são necessidades básicas da população e têm prioridade em caso de algum aperto financeiro. Até agora, a crise não se refletiu no resultado das vendas da rede francesa Carrefour, que não só manteve seu quadro de funcionários como prevê contratações. A empresa confirma a abertura de 70 lojas neste ano, incluindo todas as suas bandeiras - Carrefour, Carrefour Bairro, Atacadão e Dia %. A expansão criará 4 000 novos postos de trabalho. Até o final de 2010, o grupo realizará investimentos de 2 bilhões de reais. "O Brasil continua a ser um dos países prioritários para os investimentos do grupo", afirma Jean-Marc Pueyo, presidente da rede no país.
Há razões para a confiança de multinacionais, como o Carrefour, no país. Se é verdade que o Brasil está sendo duramente afetado pela crise, também é certo que poucos países estão mais preparados para enfrentá-la. Afinal, temos um mercado doméstico forte e uma economia suficientemente diversificada - e isso pode fazer a diferença em 2009. Vamos gerar menos emprego do que no ano passado? Certamente. Mas, diante da magnitude dos problemas em escala global, não deixa de ser uma boa notícia o fato de o Brasil ainda conseguir ampliar sua força de trabalho.
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